O código civil de 1.916 (lei 3071/1916), revogado em 2003 – com a entrada em vigor do código civil de 2002 – previa, em seu artigo 258, parágrafo único[1], algumas hipóteses nas quais o casamento deve ser regido pela separação obrigatória de bens (também conhecida como separação legal). A previsão foi replicada pelo código civil de 2002, no artigo 1.641, conforme a seguir:
Art. 1.641. É obrigatório o regime da separação de bens no casamento:
I – das pessoas que o contraírem com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento;
II – da pessoa maior de 70 (setenta) anos; (Redação dada pela Lei nº 12.344, de 2010) – redação atual (grifo nosso)
III – de todos os que dependerem, para casar, de suprimento judicial.
São três as hipóteses vigentes e, por isso, abordaremos cada uma delas de forma detalhada a seguir, mas antes é necessário que abordemos o que é o regime da separação obrigatória.
Como a interpretação literal sugere, neste regime de bens, os bens adquiridos por um dos cônjuges não se comunicam com o patrimônio do outro cônjuge. Em outras palavras, os bens de um dos cônjuges compõem seu patrimônio individual e, em eventual dissolução da relação (divórcio, morte ou anulação), não serão partilhados com o outro cônjuge. Esta lógica se aplica, em regra, a todos os bens, passados, presentes ou futuros.
Veremos a seguir algumas questões importantes a serem consideradas.
Diferenças entre o regime da separação obrigatória e o da separação consensual
O regime da separação obrigatória (ou legal) possui regras quase iguais ao da separação convencional. Não são exatamente iguais em razão de duas situações importantes:
1) A súmula 377 do Supremo Tribunal Federal[1], que, como se verá a seguir, estabeleceu regras hibridas adotando algumas regras do regime da separação obrigatória e outras do regime da comunhão parcial e;
2) As regras de direito sucessório, pois no regime da separação obrigatória, com o falecimento do cônjuge, o cônjuge sobrevivente não concorrerá com os descendentes[2], diferentemente das regras da separação convencional, na qual o cônjuge sobrevivente concorre com os descendentes na herança.
Além disso, diferenciam-se por sua origem, pois uma é obrigatória e a outra é escolhida pelos nubentes.
Súmula 377 do STF
A redação da súmula 377 do STF, se lida e interpretada isoladamente, sugere ao leitor a extinção do regime da separação obrigatória, pois determina, em sentido contrário à lei, que os bens adquiridos na constância do casamento sujeito ao regime da separação obrigatória devem compor o patrimônio conjunto do casal.
A interpretação literal substituiria, na prática, as regras da separação total pelas regras da comunhão parcial, afinal, este regime estabelece que os bens adquiridos na constância do casamento integram o patrimônio conjunto do casal.
A solução para o impasse jurídico vem da doutrina e da jurisprudência que após algumas mudanças de interpretação, atualmente consideram (majoritariamente) que a súmula trata apenas de bens adquiridos onerosamente e desde que o cônjuge interessado faça prova de esforço comum[3].
Assim, a regra atual determina que os bens anteriores ao casamento (submetido ao regime da separação obrigatória) não compõem o patrimônio conjunto, assim como aqueles adquiridos após a celebração, exceto aqueles adquiridos onerosamente e cuja aquisição tenha se dado com esforço comum, cabendo a prova do referido esforço comum ao cônjuge interessado na comunicabilidade.
A pergunta clichê de todo casamento celebrado nos filmes e novelas “se alguém tiver algum motivo que impeça o casamento aqui celebrado, fale agora ou cale-se para sempre” tem uma razão de ser: as causas impeditivas de celebração do casamento.
Para algumas pessoas, ao se relacionarem, o casamento é completamente proibido pela lei brasileira, em razão da reprovabilidade social da relação. São elas:
I – pais e filhos, avós e netos, bisavós e bisnetos, seja o parentesco natural ou civil;
II – Sogro e sogra com genro e nora. É importante explicar que o divórcio não extingue a afinidade, permanecendo o impedimento mesmo após a dissolução do casamento/união estável, por determinação do artigo 1.595, § 2º, do código civil[4];
III – o adotante com quem foi cônjuge do adotado e o adotado com quem o foi do adotante;
IV – os irmãos, unilaterais (só de pai ou só de mãe) ou bilaterais (de pai e mãe), e demais colaterais, até os tios e sobrinhos;
V – o adotado com o filho do adotante, que para a lei são tratados como irmãos;
VI – as pessoas casadas (vedação á bigamia);
VII – o cônjuge com o condenado por homicídio ou tentativa de homicídio contra o seu consorte.
Além disso, a lei determina que as causas impeditivas somente podem ser alegadas, por qualquer pessoa capaz, até o momento da celebração do casamento[5] e devem ser declaradas pelo cartorário ou pelo juiz, independentemente de provocação, se delas tiverem conhecimento.
Está, por isso, justificada a pergunta que todo celebrante de casamento civil faz.
Há, além das causas impeditivas, as causas suspensivas de celebração do casamento, que não impedem a celebração, mas que, caso existam, obrigam os nubentes a casarem-se pelo regime da separação obrigatória. Em outras palavras, a lei não veda, mas impõe restrições, para salvaguardar os direitos de terceiros.
As causas suspensivas, que permitirão o casamento, mas obrigarão os nubentes ao regime da separação obrigatória são:
I – o(a) viúvo(a) que tiver filho do cônjuge falecido, enquanto não fizer inventário dos bens do casal e der partilha aos herdeiros;
II – a viúva, até dez meses depois do começo da viuvez e a mulher cujo casamento se desfez por ser nulo ou ter sido anulado, até dez meses depois da dissolução da sociedade conjugal – esta previsão se justifica pela possibilidade de gravidez. A precaução da lei decorre da do risco de conflito entre presunções legais, pois ao mesmo tempo a lei presume serem concebidos no casamento os filhos nascidos em até 300 dias após seu término e após 180 dias de seu início[6]. Seria possível, assim, que um filho nascesse após 180 dias do início do novo casamento, mas antes de 300 dias após a dissolução do anterior. Cabe, no entanto, a observação que o dispositivo é antiquado, tendo em vista a possibilidade e viabilidade atual de realização de exames de DNA, bem como sua aplicabilidade seletiva – o que não se coaduna com o sistema jurídico atual (discussão para outro momento).
III – o divorciado, enquanto não houver sido homologada ou decidida a partilha dos bens do casal. Esta causa suspensiva visa resguardar os bens do ex-cônjuge;
IV – o tutor ou o curador e os seus descendentes, ascendentes, irmãos, cunhados ou sobrinhos, com a pessoa tutelada ou curatelada, enquanto não cessar a tutela ou curatela, e não estiverem saldadas as respectivas contas. Esta causa suspensiva visa impedir que o curador/tutor se aproveite da vulnerabilidade do curatelado/tutelado.
Em qualquer dos casos, os nubentes podem solicitar judicialmente, de maneira fundamentada, a não aplicação das causas suspensivas, a fim de não ser aplicável o regime da separação obrigatória. A fundamentação necessariamente deve demonstrar não estarem presentes os riscos que as hipóteses visam evitar.
É necessário que se explique que o regime da separação obrigatória por idade (art. 1.641, II, do código civil) sofreu, ao longo do tempo, algumas alterações, em razão tanto da mudança nos valores da sociedade brasileira, quando – e principalmente – no bem vindo aumento da expectativa de vida – que em 1916 era de cerca de 35 anos[7], em 2002 era de cerca de 71 anos[8] e em 2010 chegou aos 74 anos[9] – o que resulta em melhora considerável no nível de atividade de pessoas com idade mais avançada e, por consequência, em menor vulnerabilidade.
Por isso, o código civil de 1.916 determinava que homens maiores de 60 anos e mulheres maiores de 50 anos, ao contraírem casamento, estariam obrigatoriamente sujeitos ao regime da separação de bens (separação legal), ao passo que a determinação legal atual é de que apenas aos maiores de 70 anos[10] é obrigatório o regime da separação legal.
A determinação legal encontra justificativa na preservação dos direitos dos futuros herdeiros e do próprio idoso, que pode ser vulnerável a eventuais “golpes do baú”, onde pessoas mal intencionadas possam encontrar oportunidade de subverter a finalidade do casamento e casarem-se com o exclusivo objetivo de enriquecimento.
É óbvio que ainda podem existir casamentos com o objetivo de enriquecimento, mas o que a lei pretende é evitar que um dos cônjuges, eventualmente vulnerável nesta relação, seja enganado. Presume-se, neste sentido, que aos 70 anos, uma maior parcela da população seja vulnerável.
Necessitam de suprimento judicial para se casar, de maneira geral, os relativamente incapazes, maiores de 16 anos[11] que não tenham autorização do seus pais ou representantes legais[12].
São relativamente incapazes os maiores de 16 e menores de 18 anos e os assim judicialmente reconhecidos.
É importante esclarecer que a redação atual do Artigo 1.520, do código civil, alterada em 2019, pela lei nº 13.811, proibe o casamento de pessoas com menos de 16 anos, tornando a celebração de casamento, nessa hipótese, incompatível com a lei brasileira, o que também impossibilita eventual suprimento judicial.
Antes da alteração do artigo 1.520 do código civil, a redação autorizava, excepcionalmente, o casamento de menores de 16 anos[13], em caso de gravidez[14]. Com a alteração, não há mais qualquer possibilidade de suprimento judicial para autorizar casamento de menores de 16 anos.
Há, entretanto, uma disposição legal[15] que determina que não será anulado o casamento contraído por menor de 16 anos que resultar em gravidez.
Pense em um casamento eventualmente celebrado com apresentação de documentos falsos, no qual um menor de 16 anos tenha se casado e posteriormente se descubra que um dos nubentes era menor de 16 anos. Este casamento deve ser anulado, por determinação do artigo 1.550, inciso I, do código civil, exceto se do casamento resultar gravidez, por determinação do artigo 1.551 do mesmo código civil.
Trata-se da única hipótese, admitida atualmente pela lei brasileira, na qual um menor de 16 anos poderá, legalmente, permanecer casado.
Pois bem, aos relativamente incapazes é permitido o exercício das atividades da vida civil (dentre elas o casamento), desde que haja consentimento de seus representantes legais. Caso deseje praticar um ato, havendo recusa do representante legal no consentimento, e sendo injusta esta recusa, o relativamente incapaz pode requerer o suprimento judicial do consentimento.
Nos casos permitidos, caso a justiça conceda o suprimento, a lei determina que este casamento poderá ser realizado, mas deverá ser celebrado pelo regime da separação obrigatória de bens.
Conclusão
O regime da separação obrigatória de bens determina que em algumas situações (hipóteses previstas em lei, art. 1.641 do cc), o casal terá seu patrimônio completamente separado, de modo a evitar a futura partilha do patrimônio individual, mesmo que adquirido durante a constância do casamento. Determina também que o cônjuge sobrevivente não concorrerá com os descendentes na herança do cônjuge falecido. Essa condição não depende da vontade dos noivos, mas de uma imposição da lei. A exceção está na súmula 377 do STF, que determina que o patrimônio adquirido onerosamente e com esforço comum, durante a constância do casamento, deve ser considerado patrimônio conjunto do casal e, portanto, partilhado no momento da dissolução do casamento (pelo divórcio ou pela morte). As regras se aplicam à união estável.
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[1] Súmula 377: “No regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento.”
[2] Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte: (Vide Recurso Extraordinário nº 646.721) (Vide Recurso Extraordinário nº 878.694)
I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;
[3] Indico a consulta de jurisprudências neste sentido pelo site Jusbrasil: https://www.jusbrasil.com.br/busca?q=s%C3%BAmula+377
[4] Art. 1.595, § 2 o “Na linha reta, a afinidade não se extingue com a dissolução do casamento ou da união estável.”.
[5] Art. 1.522. Os impedimentos podem ser opostos, até o momento da celebração do casamento, por qualquer pessoa capaz.
[6] Art. 1.597. “Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos: : I – nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal; II – nascidos nos trezentos dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento”
[7] Fonte: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2016-08/ibge-expectativa-de-vida-dos-brasileiros-aumentou-mais-de-75-anos-em-11
[8] Fonte: https://veja.abril.com.br/brasil/ibge-expectativa-de-vida-no-brasil-sobe-para-749-anos/
[9] Fonte: https://censo2010.ibge.gov.br/noticias-censo.html?busca=1&id=1&idnoticia=3324&t=2015-esperanca-vida-nascer-era-75-5-anos&view=noticia
[10] Inicialmente, o código civil de 2002 determinou que os maiores de 60 anos estariam sujeiros ao regime, mas em 2010, a lei 12.344, alterou a idade para 70 anos.
[11] Art. 1.517. O homem e a mulher com dezesseis anos podem casar, exigindo-se autorização de ambos os pais, ou de seus representantes legais, enquanto não atingida a maioridade civil.
Art. 1.520. Não será permitido, em qualquer caso, o casamento de quem não atingiu a idade núbil, observado o disposto no art. 1.517 deste Código.
[12] Art. 1.519. A denegação do consentimento, quando injusta, pode ser suprida pelo juiz.
[13] Texto revogado do Art. 1.520: “Excepcionalmente, será permitido o casamento de quem ainda não alcançou a idade núbil ( art. 1517 ), para evitar imposição ou cumprimento de pena criminal ou em caso de gravidez.”
[14] A lei 11.106/05 revogou a extinção de punibilidade pelo casamento do criminoso com a vítima, em caso de crimes contra os costumes, por isso, a parte do artigo 1.520 do cc “para evitar imposição ou cumprimento de pena criminal” já estava revogada tacitamente.
[15] Art. 1.551 do código civil: “Não se anulará, por motivo de idade, o casamento de que resultou gravidez.”
por Fabio Nery, advogado, OAB/SP nº 351539.
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